A arte cristã na construção da unidade.
Peter Roger (1933- ), A Ascensão, Methodist Modern Art Collection No. ROG/1963.
Quando a 8 de janeiro me chegou o pedido de um texto para esta rubrica Em diálogo com a arte e a cultura, acabava de folhear o opúsculo deste ano para a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, que anualmente se celebra de 18 a 25 de janeiro. De facto, no primeiro mês de cada ano acendem-se aspirações ecuménicas, a irradiar tanto quanto possível no curso do ano. A relação entre arte e unidade veio-me então como mote para o texto pretendido, a disponibilizar no quadro da referida Semana, mesmo contornando eu o que diretamente se me pedia, o comentário a uma obra de arte.
A arte cristã nem sempre foi veículo de consensos e convergências, como demorou, aliás, ela própria a ser consensual entre os cristãos. Pense-se nas resistências paleocristãs à representação iconográfica, compreensivelmente motivadas pelas precauções idolátricas dos textos judaicos que a Bíblia cristã acolheu. A primeira arte cristã soube, contudo, percorrer o seu caminho pelos trilhos de uma arte simbólica e narrativa, que evocasse a expressão da fé ou narrasse aos olhos dos crentes os episódios das Escrituras, sem o risco de a obra de arte obscurecer o próprio Deus ou tomar o seu lugar.
Podemos ainda evocar outros momentos em que a expressão artística do cristianismo foi ocasião de conflitos, como quando, nos séculos VIII e IX, a crise iconoclasta tomou conta do mundo bizantino, e as lutas a favor e contra as imagens geraram intensas disputas até ao derramamento de sangue e à destruição dos ícones. Afinal os monoteísmos estritos revelaram-se adversos à figuração, e a ênfase dada no Oriente à natureza divina de Cristo na aproximação aos monofisitas, após a definição de Calcedónia, parecia divergir da possibilidade de representação material. A querela das imagens era, contudo, ainda mais complexa, caldeando antagonismos entre o mundo monástico que as promovia e o clero secular imperialmente tutelado a elas mais refratário. Juntam-se as sensibilidades diversas de um Oriente rendido à “energia” dos ícones e de um Ocidente que acolhia as imagens sobretudo pelas suas virtualidades pedagógicas face às massas iletradas.
Sem pretender ser exaustivo, as divergências voltariam por ocasião da Reforma. Mesmo se o posicionamento protestante não foi unívoco, pode dizer-se que as ressonâncias espirituais da justificação só pela fé, a aversão ao ritualismo litúrgico e o fervor bíblico conduziram os cristãos da Reforma a abrirem-se à palavra de Deus em detrimento das lendas dos santos, ocasionando indiferença ou repúdio das imagens. Mesmo quando evitou a fúria iconoclasta, o protestantismo enveredou por posições anicónicas que não favoreceram as artes plásticas. Do lado católico, conjugando proposta e reação, a arte confirmou o culto dos santos com o recurso às imagens, refletiu a piedade mariana, expressou a necessidade de arrependimento e a beleza do perdão, e propiciou a representação de cenas alusivas à eucaristia.
A arte foi ocasião de divergência, mas pode ser sobretudo lugar de encontro, porquanto a Deus não se chega apenas pela verdade das afirmações dogmáticas, mas também pelo belo que eleva o espírito humano em direção à transcendência. A arte faz-se de matéria sublimada pela mão do artista a dizer algo que a ultrapassa. Paulo VI, na conclusão do II Concílio do Vaticano, apelidando os artistas de «guardiães da beleza no mundo», referiu que «a beleza, como a verdade, é o que infunde alegria no coração dos homens, é aquele fruto precioso que resiste ao passar do tempo, que une as gerações e as faz comungar na admiração». A beleza constrói, pois, a comunhão.
Se existiram expressões artísticas que ao longo dos tempos evidenciaram a divisão, outras houve que nesses e noutros tempos foram lugar de convergência na expressão da fé. Mais imune às querelas que rodearam as artes plásticas, a música constituiu-se em expressão de harmonia, ao jeito daquela que provém dos sons verticalmente ajustados e coerentes. Pense-se na sensibilidade religiosa de Bach que, sendo protestante, guindou a música cristã aos mais altos patamares e não se coibiu tampouco de compor missas em latim, a mais reconhecida das quais a Missa em Si menor. Independentemente dos motivos de contexto que a justificaram, dela se disse ser «o mais impressionante encontro espiritual entre os mundos da glorificação católica e o culto luterano da cruz» (Alberto Basso) ou «um dos testemunhos mais impressionantes que a história conhece, daquele espírito interconfessional e pan-europeu que impregnou a música no final da era barroca» (Friedrich Blume).
Se a busca da unidade se faz por vias plurais, também a arte, que no passado foi por vezes ocasião de desencontros, pode dar o seu contributo para a construção da unidade. Pode dá-lo no conhecimento das diferentes tradições, como aliás na partilha respeitosa de espaços com identidade confessional ou realizados em perspetiva inclusiva e aberta na procura de expressões comuns. Não podemos ainda participar plenamente dos mesmos sacramentos, mas podemos trazer até à sua celebração as riquezas expressivas que mutuamente nos foram fazendo e elevando. Mas a arte prestará ainda o seu serviço à unidade pela procura conjunta e pelo encontro com uma linguagem que transponha «para fórmulas significativas o que, em si mesmo, é inefável» (João Paulo II, Carta aos artistas, n. 12), em convergência e diálogo com as gramáticas da arte dos nossos dias. O diálogo cultural que a arte propícia será também possibilidade de percurso interconfessional e ecuménico.
Peter Roger (1933- ), A Ascensão, Methodist Modern Art Collection No. ROG/1963
Sanaksenaho Architects, Capela ecuménica de Santo Henrique, Turku, Finlândia (2004-2005)