Joker.

Joker (2019) - DoP: Lawrence Sher

Joker (2019) - DoP: Lawrence Sher

“A minha mãe diz-me sempre para sorrir e pôr uma cara feliz” diz Arthur Fleck, um doente mental, no trailer do filme Joker, de 2019, realizado por Todd Phillips. É o primeiro filme em cinema centrado na personagem de Joker, o vilão que aparece pela primeira vez na banda desenhada Batman, da editora DC Comics, em 1940. Talvez este arqui-inimigo de Batman, incarnação de uma violência irracional e gerador do caos, se tenha inspirado na personagem do filme, O homem que ri (1928), por sua vez nascido de um livro de Victor Hugo. Dentre as várias vezes que foi trazido para o cinema, sempre associado a Batman, sublinhamos o filme Batman (1989), de Tim Burton, onde é interpretado por Jack Nicholson, com o nome de Jack Napier, e Batman: O cavaleiro das trevas (2008), de Christopher Nolan, interpretado pelo inesquecível Heath Ledger, falecido pouco depois de terminar as filmagens.

O modo como a personagem de Arthur Fleck lida com o mal à sua volta, sendo levado a transformar-se no terrível Joker, merece alguma reflexão que nos leva além da fruição do impressionante desempenho de Joaquin Phoenix neste papel, que lhe mereceu o Óscar de Melhor Actor. A questão do mal e do modo de a ele nos opormos, sempre merece a nossa reflexão.

O filme propõe uma narrativa para o percurso que leva um homem a tornar-se o malévolo Joker muito distante das habituais. Digo habituais porque são díspares e o próprio Joker diz que não se lembra da sua vida sempre da mesma maneira. Se as histórias tradicionais narram episódios de violência sofrida, que o levam a ter um “sorriso” permanente cortado no rosto, e de um acidente com produtos químicos, que lhe dá a cor das faces e do cabelo, neste filme Joker/Arthur Fleck, é um doente psíquico, incompreendido, olhado como uma aberração, escarnecido e violentamente agredido.

Arthur Fleck tem uma condição mental que o leva a rir sempre, descontroladamente, nos momentos mais inconvenientes, e ninguém, senão a mãe, compreende o seu riso perturbador. Decerto já experimentamos como o riso caminha numa estreita fronteira entre a simpatia e a agressão, senão experimentemos dizer uma piada sobre alguém. Lembremos como o riso, que a psicologia entende como algo profundamente humano, foi, durante tantos séculos, entendido como invenção do Diabo. A expressão “riso demoníaco”, atesta-o. Apoiados na falta de referências evangélicas ao riso de Jesus e numa interpretação restritiva da Regra de S. Bento, os monges inibiram severamente o riso, questão central na trama de O Nome da Rosa, de Umberto Eco. O riso de Arthur Fleck assusta uns e desrespeita outros, e fá-lo entrar numa espiral desumanizadora: é agredido, atraiçoado, despedido, perde o apoio de saúde e acaba escarnecido num programa televisivo. Um caminho de Job. Afinal, trazer sempre um sorriso e uma cara feliz pode não ser bom.

Ao contrário de outras aparições de Joker na cultura contemporânea, este filme é muito eficaz a despertar a nossa compaixão. Como não nos sentirmos solidários com alguém que, ao constatar a impunidade dos poderosos, diz a um pivot televisivo: “Já viu como é lá fora, Murray? Alguma vez sai do estúdio? Todos se limitam a gritar e berrar uns com os outros. Já ninguém é civilizado. Ninguém pensa como será ser a outra pessoa. Você acha que homens como Thomas Wayne [magnata, pai de Bruce Wayne, futuro Batman] já pensaram como será ser alguém como eu? Ser outro em vez de si próprio? Não o fazem. Acham que vamos ficar sentados e aceitar tudo, como meninos bem-comportados. Que não vamos transformar-nos em lobisomens e tornar-nos selvagens!”.

Arthur experimenta a violência perpetrada por uma sociedade sem compaixão. Sem a mais elementar empatia, quando ninguém procura ver pelo olhar do outro, compreendê-lo, dar-lhe uma oportunidade, por pequena que seja, a vida torna-se impossível. Aqui, todos nos sentimos unidos com Arthur, que ganha a nossa simpatia e congrega as dores de tantos incompreendidos, tantos que não encontram uma réstia de oportunidade. Lembro-me de ouvir falar, em pleno Metro, do “filme do palhaço”, como muitos lhe chamaram, com a concordância de quem sente a mesma impotência perante uma sociedade anónima e violenta. Diz Arthur Fleck: “Serei eu, ou está tudo a endoidecer lá fora?”.

Lá fora, nas ruas de Gotham City, começa uma onda de manifestações violentas com pessoas mascaradas de palhaço, em solidariedade com Arthur, depois de um episódio de agressão entre ele e alguns jovens executivos das empresas Wayne. Ao vê-los, decerto nos lembramos das máscaras da novela gráfica e do filme V de Vingança, que passaram para tantas manifestações de rua. Arthur inspira os manifestantes e estes inspiram-no a fazer do disfarce uma nova identidade, transformando-se em Joker, livre das peias das convenções sociais. Como em Taxi Driver, é o homem comum que decide tomar uma atitude e fazê-lo violentamente, porque só os violentos se fazem ouvir.

Renascido como Joker, Arthur torna-se um agente do caos, promovendo a mesma vaga de violência ruidosa e cega. A nova identidade, que o desfigura, parece legitimar toda a anarquia, num crescendo de destruição. Quando um polícia diz: “Toda a cidade está a arder por causa do que fez.”, Joker conclui: “Eu sei. Não é belo?”. É aqui que o filme nos interpela. Será que a nossa empatia por Arthur, ao constatarmos como é maltratado, se estende a esta conclusão? Será a vingança o último reduto dos oprimidos? Será a violência a única arma para a revolução dos desfavorecidos?

Creio haver nisto uma armadilha perigosa. A violência é a língua que falam os poderosos, os que seguem a lógica do mundo. Quando nos valemos da violência, tornámo-nos seus servidores e nada construímos de novo. Tudo agravado pela ilusão de que nos tornámos vencedores, quando fomos, afinal, derrotados, reduzidos à mesma lógica dos que queríamos combater, transformados naquilo que rejeitávamos. Acabámos do lado dos que se dispõem a derramar o sangue dos outros por uma qualquer causa. Dos que vêm as guerras de dentro de um gabinete. Nada disto pode fazer a diferença. É apenas e ainda a mesma e velha violência.

Devemos voltar ao que sentimos pela personagem de Arthur, e dificilmente sentiríamos por Joker, a compaixão. O caminho da compaixão, não tem de desembocar na violência, muito pelo contrário, como nos ensina o evangelho de Jesus. O caminho de Jesus é mais difícil, menos reactivo, mas faz a verdadeira diferença, pois opõe-se ao mal com o bem. Amar os inimigos, recusar a vingança, não ceder ao uso das mesmas armas do inimigo, lutar a causa do bem sendo bons sempre, com todos, até ao fim. Até derramar o sangue, sim. Mas como Jesus, até derramar o nosso sangue, não o dos outros.

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