A doença: uma experiência espiritual.

·       Uma visita

A irmã doença veio visitar-me. De um golpe e sem pedir licença alguma chegaram, sem eu me dar conta, três indesejáveis visitas:

1.     Uma anemia, que desde outubro de 2019, me retirou as minhas cores naturais. Durou mais de um ano, quando uma anemia se cura normalmente em 3 ou 4 meses. Daí o meu médico de família lhe ter chamado, uma “anemia persistente”.

2.     Um pouco também de imprevisto, ainda a anemia não estava totalmente tratada aparece um cancro no lobo superior esquerdo do pulmão. Fui operado apenas no dia 30 de março de 2020 no Hospital Regina Elena em Roma.

3.     E como “não há duas sem três” no dizer do provérbio português chegou, já em período pós-operatório, um problema neuromuscular que me retirou a sensibilidade a toda a coxa direita.

·        O Anúncio

O anúncio destes três “amigos” que vieram coabitar comigo podiam colocar-te em estado de choque. E naturalmente não seria para menos. Vários amigos, estes reais, perguntaram-me: “E como reagiste a tais anúncios?”. Pensariam eles, com alguma depressão. Basta falar de cancro e já faz medo. E, se além disso, se a isso se junta uma anemia e uma insensibilidade, bastante dolorosa da coxa direita, maiores seriam as possibilidades de uma depressão anunciada.

Pois, bem, não! Foi o que eu disse aos meus amigos. Recebi esses anúncios, sem alegria é verdade. Mas, nada em mim que tocasse a depressão.

·        Deus no meu caminho

De facto, em tudo isto que, em catadupa, ia aparecendo na minha vida, um pouco tocada pela doença, eu via o dedo de Deus. Tanto a anemia como o cancro apareceram sem serem procurados. “Foi um puro acaso”, dirão alguns. Eu digo: “Fui um ato de benevolência do meu Senhor!”. Será que o acaso existe? Não sou filósofo, mas orientei a minha intuição para outra direção: “Um aviso que vem de Deus; toma atenção; trata-te já, sem mais esperar. E confia no Senhor”.

Um pouco no sentido que nos é apresentado no Salmo 37, 5: “Põe a tua vida nas mãos do Senhor, confia nele e ele te ajudará”. Isto já é uma pequena interpretação do que seria uma versão mais próxima do original hebraico que seria: “Entrega o teu caminho ao Senhor, confia nele, e ele o fará”. Neste salmo, David reflete sobre a diferença entre o justo e o ímpio, anotando que a felicidade do ímpio é passageira e enganosa. O justo, ao contrário, deve descansar no Senhor e confiar nele. Foi o que eu fiz perante esses anúncios menos agradáveis que me chegaram.

E neste sentido prefiro a versão mais próxima do original hebraico do que a pequena interpretação que aparece já na nossas Bíblias. “Entrega o teu caminho ao Senhor”. Foi o que fiz “entregando-lhe” todas as preocupações (o peso ou o fardo, para estar mais próxima da versão original) que estes anúncios me podiam trazer. Com absoluta confiança. Vinha ao meu espírito também a frase de Pedro em 1 Pedro 5, 7: “Confiem-lhe todos os vossos problemas, porque ele se preocupa convosco”. Ou como outras traduções dizem: “Porque ele tem cuidado de nós”. Aí estava a razão da minha serenidade, mesmo ao receber a notícia de um cancro: “Deus cuida de mim!”.

E voltava atrás, em muitos momentos da minha vida mais agradáveis do que este que agora vivia com a anemia e o cancro, e aí encontrava Deus que tinha cuidado de mim, e de que modo! De um modo em que sempre me tinha transportado nas suas asas e oferecido tantas boas coisas de que nem sequer suspeitava. Compreendia então outra frase bíblica de João: “Deus é maior do que o nosso coração e conhece tudo” (1 Jo 3, 20). Esta frase aparece num contexto ético ou moral em que o nosso coração nos pode condenar de qualquer erro. Deus é maior que o nosso coração e os nossos erros.

Mas eu aplicava-a a este contexto de “menos saúde” em que, em muito pouco tempo, me vi envolvido. Eu não tinha dúvidas: Deus era maior que esta situação que, apesar de tudo, eu via na sequência de tantas e tão agradáveis que Deus me tinha dado. Acolho esta também, como um dom do seu amor e com a firme confiança de que será ultrapassada. Deus cuidou de mim em caminhos em que não houve escolhos. Deus cuidará de mim neste momento em que uma anemia e um cancro me visitam. Eu “entrego-lhe” esse peso e, ao entregar-lho, nada mais estou do que a fazer-lhe um ato de confiança, diria mesmo de obediência. Não disse ele: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei” (Mateus, 11, 28). Deus arrancava-me a qualquer medo possível.

·        Obrigado, Senhor

No Hospital Regina Elena, nos 9 dias que fiquei internado, acabei por engendrar um livro, com o título: Uma experiência espiritual – Uma Anemia, uma Neoplasia, uma Meralgia. São 151 poemas com as respetivas notas-reflexão. Talvez este poema Obrigado, Senhor, os possa resumir a todos.

Obrigado, Senhor,

Por tudo o que passou!

Tanta dor!

Mas a Tua presença ficou

Mais gravada, em mim!

A Tua dor foi bem mais, sem fim!

 

A anemia

Que trouxe tantos problemas,

Como há tempos não via!

E, agora, em horas mais amenas,

É tempo de agradecer!

Este é o meu modo de ser!

 

Depois esse cancro, descoberto…

Quem o diria, ali, escondido?

Tu o disseste, em carinho certo,

Por mim, pecador, por Ti acolhido.

Obrigado, como viste tão profundo,

Dentro do meu próprio mundo!

 

Faltava o problema neuromuscular,

Para completar a minha pequena cruz.

Mas eu sei que está aí o Teu olhar,

Que ao meu caminho trouxe nova luz!

Por agora, são dores do passado!

Que posso dizer, se não OBRIGADO?

 

Obrigado porque me acompanhaste

Em toda esta minha dor.

Não é o Calvário por onde passaste,

Sinal supremo do Teu amor.

“Quero, sê curado!”. E assim foi!

Tanta dor, Senhor, que agora já não dói!

Roma, 29 de abril de 2020

Nas doenças, o Senhor nunca deixou de me acompanhar. As duas primeiras (a anemia e o cancro nos pulmões) foram descobertas por absoluta graça d’Ele, já que foram descobertas quando não se procuravam. ELE no-las revelou, para que pudéssemos atuar a tempo.

Fiz a operação ao cancro na Quaresma de 2020. Fiz a operação à anca na Quaresma de 2021. Foram Quaresmas mais vividas em comunhão com o sofrimento do Senhor. Mas a Quaresma desemboca na Páscoa do Senhor, a Sexta-Feira Santa no Domingo de ressurreição. A Páscoa do Senhor e a alegria da ressurreição são a nossa meta última. Através da cura das nossas enfermidades e do alívio das nossas dores o Senhor faz-nos já sentir e viver essa alegria que Ele nos traz em plenitude com a sua ressurreição, com a sua vitória sobre a morte, sobre o sofrimento e a dor.

Foi o que eu senti e vivi na Páscoa de 2020 e na Páscoa de 2021, com a alegria da cura que o Senhor me deu. Era como se eu ouvisse frequentemente a palavra de Jesus, no Evangelho do leproso que lhe pedia, de joelhos: “Se quiseres, podes limpar-me”, E Jesus sempre atento à dor e ao sofrimento dos outros: “Quero, sê curado” (Marcos 1, 40-45). E foi mesmo. Foi essa proximidade com o Senhor que eu experimentei na Quaresma e na Páscoa de 2020 e 2021, sentindo a mesma certeza que nos dá o Evangelho: a tua dor e o teu sofrimento passarão mergulhados na minha dor e no meu sofrimento. E passaram mesmo! Permanece agora, como dever, mas um dever que vem do amor, agradecer ao Senhor por tanta bondade. E surge, espontaneamente, uma oração de agradecimento e de pedido: “Obrigado, Senhor… e continua a curar-me se necessário for!”.

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