«A minha alma glorifica ao Senhor…»

Recordo-me de ir na ambulância, entrar na urgência covid19 do Hospital de S. João no Porto, e de fazer exames. Não me recordo do tempo que estive em coma nem de ter recebido a unção dos enfermos pelas mãos do Pe. Frei Amorim, Franciscano.

Acordei no 6º piso ligado à ECMO, um sistema que permite a substituição parcial ou total da função respiratória e/ou da circulatória. Estava numa maca, com o meu corpo cheio de fios e à minha volta aparelhos ligados e diversos médicos, enfermeiros e auxiliares.

Estava numa situação de total dependência e bastante confuso. Uma enfermeira fez uma videochamada para um familiar que me contou que tivera uma fulminante pneumonia covid e que agora havia esperança graças à ECMO. Contou-me também que havia muita gente a rezar por mim. Precisei de algum tempo para juntar as peças do puzzle na minha cabeça.

Lembro-me de olhar para o lado e ver um jovem desportista de Braga, de vinte e tal anos, que já lá estava quando cheguei e ainda ficou quando parti. Lembro-me de um doente que, de vez em quando, gritava. Lembro-me de profissionais de saúde que me visitaram por sua iniciativa ou a mando de alguém, uns conhecidos outros desconhecidos. Lembro-me da visita de vários diretores e também dos capelães do hospital.

Tomei consciência da minha situação real e senti que Deus me segurava na palma da sua mão. Percebi que me fora oferecida a oportunidade de viver uma segunda vida. Como me disse o Pe. Paulo Teixeira, capelão: “o mais importante é estar vivo”. De facto, neste tempo de hospital, fiz a experiência de que tudo, mesmo tudo, é relativo. O Mais importante, o que fica, é o amor, a amizade, a fé, o bem. Tudo o resto é palha que o vento leva…

Como não podia rezar a liturgia das horas, o breviário, nem participar na santa missa, tentava rezar o terço, mas às vezes enganava-me nas contas. O Pe. Paulo dizia para não me preocupar, para fazer oração espontânea, para dar graças a Deus por tudo. E eu dava graças por tantas pessoas boas à minha volta: médicos, enfermeiros e auxiliares. E também pela nuvem de orações de muitos que se preocuparam comigo. Pedia também pela minha família, pelos doentes que estavam comigo, por todos os doentes, pelos profissionais de saúde, pelos amigos.

Segundo os médicos tive uma excelente recuperação e era preciso dar o lugar a outros. Mudei para o 2º piso, onde já estivera antes do coma, mas de que não me lembrava. A equipa de profissionais de saúde era uma verdadeira família e tive direito a um quarto só para mim, embora com a tv avariada. Com a ajuda dos fisioterapeutas comecei a movimentar-me melhor quer na cama, quer já fora dela. E até consegui levantar-me e sentar-me no cadeirão. Cada passo que dava lembrava-me de Neil Amstrong: “Um pequeno passo para o homem, um grande passo para a humanidade”.

Depois tive a visita da minha irmã, que me trouxe os óculos e o telemóvel. Trouxe também a notícia da morte do meu pai. Chorei todo o dia. A equipa médica soube do sucedido e foram muitos sensíveis. Deram-me palavras de conforto e eu pedi medicação para dormir, para não ficar toda a noite a cismar.

No dia seguinte de manhã aceitara a partida do meu pai. Confortava-me saber que morrera do coração, tivera uma morte santa, sem sofrimento. Senti mais vontade de melhorar depressa para poder voltar à família e confortar a minha mãe. A partir do Hospital de S. João liguei à minha mãe que estava no Hospital Militar do Porto. Ela estava ansiosa por ouvir a minha voz e eu a dela.

A partir daí foi sempre a melhorar, a mudar de serviço, a fazer exames, até que passei para uma zona não covid. Quando me propuseram continuar tratamento hospitalar em casa, foi como se tivesse ganho a lotaria.

Vim de ambulância para casa e ainda necessitei de oxigénio nos primeiros dias. Estar em casa fez uma grande diferença, embora significasse uma grande canseira para a minha irmã. Na mesma semana, a minha mãe tinha regressado do Hospital Militar e depois eu do Hospital de S. João. A minha irmã, com a ajuda dos filhos, tinha que subir muitas vezes por dia as escadas para levar as refeições e medicamentos aos dois quartos, transformados em enfermarias. Em pouco tempo comecei a descer as escadas e a fazer as refeições na sala ou na cozinha. Quando chegou a hora de me retirarem o cateter foi como se me tirassem as algemas e pude tomar sozinho o meu primeiro banho de chuveiro. Recebia muitas chamadas e mensagens, mas ainda tinha dificuldade em falar ao telefone. Ficava muito cansado.

Depois de tirar os pontos no centro de saúde comecei a fisioterapia no Hospital Trofa Alfena, onde trabalhava a parte pulmonar e muscular. Com o desconfinamento retomou-se também a celebração pública da Eucaristia. Entrei ao serviço paroquial no dia 19 de março, dia de S. José, no ano a ele dedicado. Naturalmente que a minha primeira intenção foi pelo meu falecido pai.

Ainda me custava estar muito tempo de pé. Sobretudo antes e depois da missa. As pessoas queriam todas falar. Também me custava a rezar o Credo ou o Glória, pois era tudo muito rápido e eu, com dificuldade em respirar, quase não conseguia acompanhar o povo. Também me custava a genufletir uma vez que não tinha músculos para segurar as pernas e o corpo.

Com o tempo tudo foi melhorando, fui recuperando gradualmente a normalidade e agora já só me falta poder jogar futebol. Continuo a ser seguido através de consultas e a fazer exames de rotina.

Olhando para trás, continuo a dar graças a Deus e a tantas pessoas conhecidas e desconhecidas. Foi um “retiro forçado”, que me ajudou a experimentar a fragilidade e dependência humanas, a nossa finitude, e colocar toda a nossa esperança em Deus.

Agradeço de todo o coração ao movimento Oásis pela corrente de oração que me ajudou imenso a superar esta prova inesperada.  Como Maria também posso cantar: “A minha alma glorifica ao Senhor…”.

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