Ciência e Fé em tempos de pandemia.
Sempre que me pediram para falar aos jovens sobre a relação entre a ciência e a fé, sempre senti que à partida todos assumiam que ou se é cientista ou se é uma pessoa de fé. E porque será assim? Porque é que para a generalidade das pessoas, os cientistas não podem ter fé, e os Homens de fé não podem ser bons cientistas? Tenho para mim, que este estado de coisas resulta de um conjunto de preconceitos que existem tanto no mundo da ciência como no mundo da fé. Senão vejamos:
· 1º Preconceito: “Um homem de fé não tem dúvidas”. Aceita a autoridade da Igreja de forma cega e acrítica. Nada pode ser mais falso. Ninguém pode verdadeiramente afirmar ter fé, se não duvida, se não se questiona. A fé não resulta de uma atitude passiva e ignorante da verdade em que se acredita. Isso é crendice. Não é fé. Ter fé implica refletir, ponderar no seu âmago. Ter fé implica sentir as verdades da fé como suas e isso só acontece depois de profunda reflexão e aprofundamento. As crises de fé são uma realidade frequente e recorrente nos homens de fé. Da crise resulta um aprofundar, um resolver de questões mal sedimentadas e que uma vez resolvidas fortalecem a fé e direcionam a vida e as suas escolhas.
· 2º Preconceito: “A fé não explica a Natureza porque não a questiona, não a experimenta, não a testa”. É verdade que a fé não fornece explicações factuais da Natureza. As interpretações da natureza à luz da fé, não são factuais. São visões poéticas que partem da perceção da realidade e não da própria realidade. A fé explica a natureza a partir das pessoas, e não independentemente das pessoas. A fé explica a natureza a partir do divino e não a partir da própria natureza. Mas será isso errado? Só é errado se essa explicação utilitarista, centrada no Homem e no seu papel no mundo, for entendida (como o foi no passado) como uma visão absoluta e literal da realidade das coisas. Do mesmo modo que duas testemunhas do mesmo fenómeno podem testemunhar coisas diferentes (sem mentir) porque vivenciaram os mesmos factos de modo diferente, temos também que aceitar que as visões literais e poéticas/teológicas da realidade não estão necessariamente erradas. Têm apenas que ser entendidas pelo que são e não pelo que pretendemos que sejam. Isso mesmo faz também a ciência. Num artigo científico, o autor é obrigado a separar o que são resultados (objetivos, factuais) daquilo que é a discussão dos resultados (interpretação, hipótese, discutível). Então o próprio método experimental assume esta natureza dualista dos fenómenos: a sua natureza pode ser diferente daquilo que é experienciável pelo homem ao observar o fenómeno. Assim, a visão da fé não está nem certa nem errada. Não é uma verdade absoluta. É uma visão do fenómeno a partir da subjetividade Humana.
· 3º Preconceito: “A ciência não se engana”. Nada é mais errado do que assumir que a ciência não faz erros. Em primeiro lugar, os erros são inerentes à pessoa. Ora como a ciência é feita por pessoas é também propensa a errar. O método científico depende de modo crítico de duas coisas bem humanas: a capacidade de observar e medir (ambas falíveis e sujeitas ao erro experimental) e a capacidade para formular hipóteses e desenhar experiências para as testar (dependentes da capacidade criativa). Tudo isto são atividades falíveis, que por um sistema de tentativa e erro e sobretudo com o sistema de correção em cadeia vai permitindo ir melhorando de modo progressivo o conhecimento científico. Nada está mais longe do processo cientifico do que a frase “está cientificamente demonstrado que…”. Com esta frase, habitualmente pretende-se dizer que a ciência arrumou o assunto. Mas para a ciência, tudo está demonstrado apenas até prova em contrário. Todo o conhecimento científico está permanentemente em estado provisório. E não podia ser de outro modo, porque os mesmos resultados, se interpretados à luz de novos dados podem afinal levar a hipóteses e conclusões bem diferentes. Por isso a ciência é uma construção permanentemente inacabada. Os cientistas de hoje colocam-se às cavalitas dos cientistas do passado, para poderem chegar um pouco mais alto.
Se estes preconceitos forem tidos em conta quando comparamos as verdades da fé e da ciência, passamos a compreender como ambas são fundamentais para a vida. Com os ensinamentos da fé (interpretados saudavelmente como metáforas e visões poéticas de uma realidade que nos escapa), relacionamo-nos de forma mais saudável com tudo e todos os que nos rodeiam. Aprendemos que tudo tem um valor intrínseco que é distinto do valor relativo que cada um lhe atribui. Tomamos assim consciência do dualismo que existe em tudo: tudo tem o seu valor, mas a tudo nós damos o nosso e relativo valor. Compreendemos assim que temos uma visão do mundo centrada no Homem e até centrada em nós mesmos, mas que não deve ser absoluta. Deus tem uma lógica diferente da nossa, e que nos é bem superior.
Com os ensinamentos da ciência, aprendemos a utilizar de modo mais eficiente a natureza, compreendemos a nossa fragilidade na ordem natural das coisas, enfrentamos a gravidade das nossas ações para o equilíbrio do mundo natural (por isso é uma visão centrada na natureza e no delicado equilíbrio de interdependência em que esta existe).
São assim, visões diferentes e complementares que nos ajudam a nos relacionarmos melhor uns com os outros e com tudo o mais que existe e existirá.
Mais do que nunca, nestes momentos de pandemia, importa ter bem presente estas duas formas complementares de entender e nos relacionarmos com o mundo. A pandemia trouxe ao de cima muitas coisas boas e más em nós. Em primeiro lugar, levou muita gente a ter um medo irracional. Ter um inimigo invisível transmissível por pessoas, levou a que muitos tivessem medo de tudo e de todos. Paradoxalmente, a insegurança que daí advém levou outros tantos a relativizar o perigo, desvinculando-se dos cuidados básicos de segurança necessários. Como era de esperar, a ciência teve, tem e terá por ainda muito tempo, um papel fundamental no esclarecimento da factualidade biológica, bioquímica, patológica, virológica e clínica do problema. Mas esta é apenas uma parte da realidade que importa conhecer. Importa também refletir no papel do indivíduo na comunidade (não apenas como elemento de contágio, mas sobretudo como elemento de esperança, de interajuda). E esse aspeto da questão é muito melhor abordado pela religião. O papel que cada um assume na construção da comunidade, no propagar da esperança, de estruturas de suporte e de apoio é algo que a Igreja defende à milénios, mas ainda mais desde o Concilio Vaticano II. A estabilidade emocional face a situações de desespero, de desalento, de rotura é bem suportada pela mensagem de esperança e de estabilidade que desde sempre foi o alicerce da Igreja e que como nunca tem um papel social fundamental.
Creio por isso que, nos tempos que vivemos, urge difundir a fé. Urge difundir a esperança. Urge difundir a confiança no amanhã. É, pois, muito importante que todas as estruturas da Igreja (catequese, grupos de jovens, grupos de casais, grupos de ação socio-caritativa, grupos de oração, instituições religiosas, paróquias, dioceses) mas sobretudo as famílias assumam o seu papel estabilizador na sociedade, difundindo a Boa Nova. Uma novidade com milénios que nos diz que apesar de todas as convulsões sociais, pandemias, guerras, desemprego, fome, etc. há sempre motivos de esperança. Se é verdade que nem sempre somos capazes de ver a luz ao fundo do túnel, é ainda mais verdade que Deus nos diz que há sempre esperança, que é preciso acreditar que a tempestade passará. Essa é a grande novidade que Jesus no trouxe. Hoje, como sempre, vale a pena acreditar. Hoje como sempre vale a pena ter esperança. Mas devemos ter essa esperança assumindo o compromisso de viver este dualismo fé-ciência como tão bem foi dito por Santo Agostinho: Reza como se tudo dependesse de Deus (Fé), mas trabalha como se tudo dependesse de ti (Ciência).